quarta-feira, 6 de junho de 2012

                                       A PIPOCA   -  RUBEM ALVES


A culinaria me fascina . De vez em quando eu até me atrevo a cozinhar. Mas o fato é que sou mais competente com as palavras do que com as panelas .

Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-me a algo que poderia ter o nome de culinaria literaria. Ja escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da cozinha: cebolas , orapro-nobis , picadinho de carne com tomate feijão e arroz , bacalhoada , sufles , churrascos . Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro poetico filosofico a uma meditação sobre o filme a festa de barbette, que é uma celebração da comida como ritual de feitiçaria . Sabedor das minhas limitações e competencias, nunca escrevi como chef . Escrevi como filosofo, poeta , psicanalista e teólogo - porque a culinaria estimula todas essas funções do pensamento . As comidas , para mim , são entidades oniricas. Provocam a minha capacidade de sonhar.

Nunca imaginei, entretanto , que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu . A pipoca, milho mimado , grãos redondos e duros , me pareceu uma simples molecagem , brincadeira deliciosa , sem dimensões metafisicas  ou psicanaliticas. Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente , ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas ideias começaram a estourar como pipoca. Percebi , então , a relação entre a pipoca e o ato de pensar.

Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura , de forma inesperada e imprevisivel.

A pipoca se revelou a mim, então , como um extraordinario objeto poetico. Poetico porque , ao pensar nelas , as pipocas , meu pensamento se pos a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma panela . Lembrei- me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem sentido religioso ? Pois tem . Para  os cristãos religiosos são o paõ e o vinho , que simbolizam o corpo e o sangue de Cristo , a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida , sem alegria , não é vida ... ) Pão  e vinho devem ser bebidos juntos .

Vida e alegria devem existir juntas . Lembrei-me , então , da lição que aprendi com a Mae Estella ,sábia poderosa do candomblé baiano : que a pipoca é a comida sagrada do candomble ...

A pipoca é um milho mirrado , sub desenvolvido. Fosse eu agricultor ignorante , e se no meio dos meus milhos graudos aparecessem aquelas espigas nanicas , eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas . Pois o fato é que , sob o ponto de vista do tamanho , os milhos da pipoca nao podem competir com os milhos normais. Nao sei como isso aconteceu , mas o fato é que houve alguem  que teve a ideia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo , esperando assim que os grãos amolecessem e pudessem ser comidos. Havendo fracassado a experiencia com agua, tentou a gordura . O que aconteceu , ninguem  jamais poderia ter imaginado . Repentinamente os gráos começaram a estourar , saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinario era o que acontecia com eles : os graos duros quebra dentes se transformaram em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer . O estouro das pipocas se transformou , entao , de uma simples operação culinaria , em festa , brincadeira , molecagem , para os risos de todos , especialmente as crianças . É muito divertido ver o estouro das pipocas .

E o que isso tem a ver com o candomble ? É que a transformação do milho duro em pipoca macia é simbolo de grande transformação porque devem passar os homens ´para que eles venham a ser o que devem ser .

O milho da pipoca não é o que deve ser . Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós : duros , quebradentes , improprios para comer , pelo poder de fogo podemos , repentinamente , nos transformar em outra coisa - voltar a ser crianças !

Mas a trasnformação só acontece pelo poder do fogo. Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca , para sempre . Assim acontece com a gente . As grandes trasnformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito , a vida inteira . São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosa. Só que elas nao percebem.Acham que seu jeito de ser é o melhor jeito de ser . Mas , de repente , vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nnca imaginamos. Dor.  Pode ser fogo de fora : perder um amor, perder um filho , ficar doente , perder um emprego , ficar pobre . Pode ser fogo de dentro :Panico , medo , ansiedade , depressão - sofrimentos cujas causas ignoramos. Há sempre o recurso aos remedios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui . E com isso a possibilidade de grande trasnformação. Imagino que a pobre pipoca , fechada dentro da panela, la dednro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou : vai morrer. De dentro de sua casca dura , fechada em si mesma , ela nao pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transofrmação que está sendo preparada . A pipoca não imagina aquilo que ela ´´e capaz. Aí, sem aviso previo , pelo poder do fogo , a grande transformação acontece : pum ! - e ela aparece como uma outra coisa, completamente diferente ,que ela mesma nunca havia sonhado. É a largarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante .

Na simbologia crista  o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo : a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro .

MORRE  E  TRANSFORMA - TE   -   DIZIA  GOETHE

E  minas, todo mundo sabe o que é piruá . Falando sobre os piruás com os paulistas , descobri que eles ignoram o que seja. Alguns , inclusive , acharam que era gozação minha , que piruá é palavra inexistente . Cheguei a ser forçado a me valer do Aurelio para confirmar o meu conhecimento da lingua . Piruá é o milho de pipoca que se recusa  a estourar .

Meu amigo  William extraordinario professor pesquisador da Unicamp , especializou-se em milhos , e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação cientifica  para os piruás. Mas , no mundo da poesia , as explicações cientificas nao valem. Por exemplo: em MInas  piruá é o nome que se dá as mulheres que nao conseguem casar .

Minha prima, passada dos quarenta, lamentava : Fiquei piruá  Mas acho que  o poder metaforico dos piruás é muito maior . Piruás sao aquelas pessoas que , por mais que o fogo esquente , se recusam a mudar .

Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem . Ignoram o dito Jesus :  Quem preservar a sua vida perde-la-á .

A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que nao estoura . O destino delas é triste. vão ficar duras a vida inteira. Não vão se tranrformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguem . Terminado o estouro alegre da pipoca , no fundo da panela ficam os piruás que nao servem para nada . Seu destino é o lixo .

Quanto às pipocas que estouraram , sao adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira ... Nunca imaginei que chearia um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu .   Piruás são aquelas que , por mais que o fogo esquente , se recusam a mudar .


Rubem Alves , escritor , filósofo e teólogo , membro da Academia Campinense de Letrs e professor emérito da Unicamp .

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